Faço minhas as palavras dele, pedindo para o vento soprá-las por outros mares.
"Lascívia
Quem ele pensa que é?
Redentor de mágoas
Feitor de milagres
Criador de destinos?
Será que se acha Deus para me reinventar humano
encharcar minha pele de febres
abençoar meu gozo com estrelas
e me fazer perder o chão e o bom senso ao reconhecê-lo Deus?
O que quer este Deus de barro
em seu andor de luzes frescas
procissão secreta pelas ruas da cidade
a levar meus olhos para o porão do mais profundo desejo?
Vai ver é Deus ao avesso
que nem se preocupa em cuidar desta alma
a pressentir cheiros devastadores
a confessar crimes não cometidos
a correr perigos desnecessários
alma que é capaz de mentir por um gemido banal.
Não, não pode ser o Deus
que mora nas bíblias torás corões evangelhos,
nos rituais sacrifícios salmos presságios
não o Deus que aprendi a amar e a temer sobre todas as coisas.
Não, possui pêlos e instintos selvagens
sorri como uma tarde quente da adolescência
é meio leopardo meio potro
índio demais para ser o todo poderoso.
É Deus nada, mas tudo pode
sorvete no frio missa sem altar carnaval em abril
até inibir velhinhas com carinhos obscenos em mim.
É Deus sim, se fosse apenas um homem
não lembraria tantos atalhos em meu corpo
ao menos esqueceria datas
nem se importaria em meu prazer ser sempre sagrado.
E o que fazer com este Deus de flor
tesa aberta primaveril rosa cravo peninsular
a me invadir de breves mares a cada beijo?
Pelo sim, pelo não, Deus
balbuciado na oração do santo do dia
para que Deus o conserve Deus
nestas intermináveis horas de lascívia."
Jacinto Corrêa, do livro Poemas Simples.
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