quarta-feira, 25 de junho de 2008

A culpa é do Fidel


A reportagem abaixo foi enviada pelo PiR e me fez lembrar de quando fomos ao Chile, há 11 anos, e da insistência do funcionário da imigração chilena em saber em qual "jornal" eu trabalhava, depois de ler no meu documento que eu era jornalista. Foi uma dificuldade fazê-lo entender, no meu portunhol precário, que não trabalhava em jornal e sim na área de comunicação de uma empresa que nada tinha a ver com a imprensa. E isso porque, naquela época, o Pinochet nem era mais o chefe de governo, embora se mantivesse à frente das Forças Armadas.
O texto a seguir é longo e, embora não retrate nenhuma novidade, vale a pensa ser lido para não esquecermos nunca o valor da democracia, por mais caótica que ela seja.

O calvário de um ídolo cubano

O boxeador Guillermo Rigondeaux, que tentou fugir no Pan do Rio, em 2007, passa por dias difíceis na Ilha

Claudio Mafra, HAVANA –Jonal O Estado de São Paulo – 16-06-2008

O pugilista três vezes campeão mundial juvenil!! Duas vezes campeão pan-americano! Medalha de ouro nas Olimpíadas de Sydney e Atenas! Duas vezes campeão mundial! Com 475 vitórias e apenas 12 derrotas! Considerado o maior boxeador do mundo! Com 27 anos de idade, o famoso e infeliz...,"Senhoooras e Senhooores! Guilhermo Ri-gon-deaux !"

Bem, aqui está ele. Óculos escuros, boné enterrado na cabeça, assustado, mal vestido, olhando para os lados para ver se foi seguido. É difícil acreditar que estou diante de um dos maiores esportistas de todo o globo. Entre Guillermo Rigondeaux e uma vida de milionário - que seria a recompensa por seu talento - estão duzentos quilômetros de água salgada. Se estivesse fora de Cuba, poderia ganhar milhões de dólares. Seria disputado pelos patrocinadores, seria adulado, teria uma vida de luxo, Ferraris, publicidade, tudo que o dinheiro pode comprar. Uma celebritie, e no entanto vai receber 120 dólares para me dar uma entrevista.

Apenas um pobre rapaz.

Durante os últimos Jogos Pan-Americanos, no Rio, em julho do ano passado, Rigondeaux e seu companheiro Erislandy Lara tentaram fugir, abandonando a delegação cubana, seduzidos pelos contratos que poderiam assinar em outros países. O que se passou é nebuloso, mas o fato é que os dois foram despachados de volta para Cuba com tanta pressa que se comenta ter sido um favor especial do presidente Lula para Fidel.

Claro que em nossa entrevista é impossível Rigondeaux dizer averdade. De fato, ele é um prisioneiro domiciliar. Limita-se a repetir o que saiu publicado no Granma, o ridículo jornaleco oficialdo regime. Fico ouvindo. Enquanto fala, olho para ele e sinto pena. Uma história completamente sem pé nem cabeça, onde o tamanho do seu desprezo pelo dinheiro só é igualado pelo seu patriotismo. E as propostas que recebeu de um empresário? "Mentira da imprensa. Sempre existem propostas e nunca aceitei nenhuma. Eu já estive em muitos países e poderia ter fugido antes.

"Algumas coisas que ele diz são interessantes: "Se eu tivesse feito o que vocês escreveram nos jornais e depois tivesse voltado para Cuba eu teria sido fuzilado", afirmou. "A delegação voltou mais cedo porque havia alguns que estavam desertando." (É verdade, dois já haviam fugido, e Fidel, com medo de que outros fossem embora, ordenou que os seus escravos-atletas voltassem antes da festa de encerramento). Rigondeaux também não sabe onde está Lara: "É bom para mim e para ele não nos encontrar-nos." É tão simplório, que não seria correto tentar pegá-lo em alguma contradição. É melhor deixá-lo em paz.

O fato é que nunca mais poderá deixar a Ilha. "El Comandante" é vingativo, e Rigondeaux vai pagar caro pelo que fez no Brasil. Vai envelhecer em Cuba, sem nunca mais competir. Esse é o seu destino e ele que dê graças a Deus por não estar dentro de uma prisão. (Talvez deva dar graças a Lula também).

Chegou a hora das fotografias. Peço para que tire o boné e os óculos. Ele hesita, mas concorda. É reconhecido imediatamente. Três pessoas vêm apertar sua mão. Esquece o medo e fica muito satisfeito. Pelo menos tem a admiração do seus compatriotas. Eu, o fotógrafo, junto com o antigo campeão mundial dos pesos médios-ligeiros de1965 Félix Betancourt, que foi quem me conseguiu o contato com ele. Por essa ajuda eu dei 70 dólares para o grande Felix, "A Pantera do Oriente", o pugilista que foi o favorito de Fidel, e que aos 60 anos de idade está na miséria.

Entre muitas de suas recordações está uma foto com o comandante, os dois muito jovens, ele pronto para entrar no ringue, magnífica figura. Bons tempos. No táxi eu disse a Félix que ele estava magro demais, e sua resposta foi que se mantinha em forma, que ainda treinava. Bastou ele descer, que o motorista disse com ironia: "Que treino que nada... Ele está é passando fome."

O povo cubano conhece muito bem a história dos seus antigos ídolos, o tratamento indigno que recebem do regime, onde os pugilistas idosos são abandonados. Quando deixam os ringues, por não saberem fazer mais nada além de lutar, são colocados de lado, ganham uma pensão miserável. Sua luta passa a ser a sobrevivência diária.

Caminhamos por uma rua mais discreta e eu aproveito para pagar Rigondeaux. Então ele chega ao fundo do poço: Me pergunta se não gostaria de "chicas". Essa não. O maior pugilista do mundo está me oferecendo prostitutas. O que mais posso dizer?

O telefone toca no quarto do hotel e dizem, em tom imperativo, que são da Inmigracion, que é para eu descer porque querem falar comigo no lobby. Claro, chegou a vez da repressão. Até agora estive livre feito um passarinho, fazendo e acontecendo, mas chegou a vez de pagar a conta. Minha primeira providência é a de rasgar rapidamente os papéis que comprometem o jornalista meu amigo, Jose Barrios (nome fictício). Por intermédio dele cheguei até aos boxeadores. Sinto pena de ficar sem alguns documentos interessantes, mas é imprudência conservá-los, e impossível escondê-los. De uma hora para a outra podem entrar no meu quarto e revistar tudo. Coloco o papel picado no saco que a arrumadeira deixou no corredor. Conservo somente a capa da revista Enepece, editada pelos refugiados de Miami, onde aparece a cara sorridente do presidente Raúl vestido de chinês, com o título "La China que nos Espera". Quero levá-la para ver se o jornal publica a foto. É hilária. Para se entender é preciso saber que Raúl Castro tem o apelido de "China", uma dupla alusão aos olhos puxados e ao fato de ser considerado gay.

Chegando ao lobby, dois militares me fazem algumas perguntas e recebo um papel no qual sou intimado por um tenente-coronel para ir depor às 9 horas do dia seguinte no Departamento de Imigração. Telefonei para oEstado e avisei que se não desse notícias em 48 horas seria uma boa idéia ligar para a embaixada brasileira. A segunda providência foi procurar Barrios naquela noite e contar tudo. Ficou com medo de ser preso. Não quer de maneira alguma que eu conserve a revista com a cara do Raul. Procuro tranqüilizá-lo dizendo que de mim não vão saber nenhuma palavra sobre ele. Não vou dizer um único nome. Se engrossarem chamo a embaixada.

Barrios sabe que vou para Miami de veleiro e, pela segunda vez, e de maneira dramática, pede para ir comigo. O que posso dizer para uma pessoa desesperada para escapar da ilha? O barco não é meu, e, sem motor, a viagem é muito demorada, 30 horas. Seria sorte demais conseguir iludir os cubanos, e depois ainda teríamos a Guarda Costeira americana. Não é possível.

É muito comum os cubanos escaparem em barcos, mas estes são superpotentes, vêm de Miami ao preço de 10 mil dólares, atracam em algum ponto da ilha e partem em extrema velocidade para outro país, ou mesmo para os Estados Unidos. O problema são os jovens, os meninos, aqueles que não têm nada a perder, e que percebendo os preparativos de fuga dos que contrataram a empreitada ficam esperando escondidos. Quando o barco chega tentam embarcar à força. Muitas vezes se atiram na água, e arriscam a vida de tal modo que não existe outra alternativa a não ser levá-los também.

Pela manhã, chegando na Inmigração, já não gostei da primeira pergunta do capitão. Olhando para a rua, e fechando a porta atrás de mim ele diz:"O senhor deixou o táxi esperando?" Mau sinal, será que está querendo dizer que sou muito otimista? Começa um interrogatório onde querem ser durões mas ao mesmo tempo educados. Eu me recuso a dar os nomes dos que me levaram a Rigondeaux. Digo que se eles têm seus informantes, eu também tenho os meus, só que os jornalistas chamam de "fontes", e que são sagradas. Antes que se irritem ainda mais, eu digo inocentemente que naquele caso tinha sido o jornal. O jornal? Sim, senhores. "O jornal pediu o endereço para a Polícia Federal. No Brasil foi um escândalo, os senhores não sabem?" É péssimo para eles, ouvirem esse "escândalo no Brasil" (percebe-se, na hora, que se sentem inferiorizados, estão sozinhos no mundo, ninguém aprova o que fazem - "um escândalo!"). Resolvem partir para outra coisa: "Mas o senhor disse no seu boleto de entrada em Cuba que veio para turismo. Como é que foi fazer entrevistas?" Novamente eu entro com o jornal salvador: "O jornal me ligou e disse que já que eu estava em Cuba, que tal aproveitar e fazer uma entrevista ?" (O nome Guilhermo Rigondeaux não é mencionado uma única vez no interrogatório ).

E por aí vamos, eles insistindo em que estou me metendo em assuntos internos cubanos. Mas os tempos são de "cambio" (abertura), é bom não exagerar, e resolvem encerrar o interrogatório. Passar bem, obrigado, e em férias não faça mais entrevistas.

Tudo levou pouco mais de uma hora.

Os cubanos assistem aos canais a cabo de Miami. É uma festa porque ficam sabendo de tudo o que o governo esconde e nega. Claro que é ilegal, mas todo mundo tem. Os que podem, pagam 10 dólares por mês pelo decodificador, e os outros fazem "gato". De vez em quando a polícia providencia "batidas", mas quando invade as casas os aparelhos já foram recolhidos. Dizem os cubanos que gente do próprio governo avisa quando a polícia vai entrar em ação. Afinal, todos têm filhos e filhas que querem assistir aos programas. O canal preferido é o 23, no qual se apresenta Maria Elvira, que mete o pau nos comandantes. Grande sucesso. Existem outros, os 51, 41 e o 69, que mostram aos cubanos a vida nos países livres, a vida que eles perdem enquanto o tempo passa.

A bonita moça da tabacaria está fazendo 24 anos e me diz que conta nos dedos os seus dias em Cuba. Tem medo de perder toda a sua mocidade sem conhecer o mundo.

Os canais cubanos só falam de política, são uma chatice. Todo o tempo é "revolución", "la consciência del momento histórico" e as baboseiras do comandante en jefe, que depois que deixou o governo começou a publicar "reflexiones" como se fosse um extraordinário pensador.

E os meus amigos cubanos já podem me esperar sentados no lobby do hotel! Antes ficavam em pé, do lado de fora, e me chamavam quando davam sorte de me ver. São as mudanças de Raúl. Também podem comprar aparelho de DVD (quando tiverem dinheiro) e aí, sim, vão deitar e rolar com os DVDs piratas, gravados do canal 23 de Miami, o que vai decuplicar as informações "contra-revolucionárias". É um perigo quandose começa a abrir um regime...

Paro no meio da rua para ver alguns meninos pequenos brincando. De repente a bolinha chega para o meu lado e correndo para pegá-la vem junto o menor dos garotos. Deve ter uns 7 anos. Olho muito sério para ele e pergunto bem alto: "Você é contra-revolucionário?!" O menino fica pasmo, os olhos muito abertos, e a voz sai bem fininha, bem baixinha:"Patria o muerte." Muito bem, o coitadinho deu a senha do seu patriotismo. Digo que é brincadeira, fico arrependido, passo a mão em sua cabeça e dou uma propina bem grande para compensar o susto.

O jornal El Nuevo Herald, de Miami, publicou que a judoca cubana Yurisel Labordie, que estava participando do Campeonato Pan-Americano de Judô, em maio, nessa cidade, também fugiu. Laordie era uma medalha certa na Olimpíada de Pequim. É bicampeã mundial (2005 e 2007). Mais uma que trocou a doce pátria pelos prazeres capitalistas.

De regresso ao Brasil, fiquei sabendo que Guillermo Rigondeaux foi chamado pela Polícia Política por causa de sua entrevista. Ele se defendeu dizendo que havia apenas repetido o que o Granma havia publicado. Foi advertido para deixar de ser bobo, que todos jornalistas mentem, e que nunca mais conversasse com a imprensa. Sua resposta foi a de que "esse jornalista não, ele não vai mentir". Agradeço a Rigondeaux por essas palavras, sinto por não haver acreditado em sua versão do fato, mas espero que no texto tenha ficado claro que realmente ele foi coerente com o que havia dito ao Granma.

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